TRIBUTO A UM GAÚCHO

  Mano Terra

 

Silêncio! Diz o posteiro, ao pereceber
que o poeta cantor se prepara para o ofício.
Nem é preciso!
Os kuéras ali presentes conhecem
Dom Telmo.

Com respeito, seus olhares se iluminam.
O foguito tremelica em labaredas suaves,
vez por outra espocando uma fagulha
como que a festejar este missal.
Os grilos fazem um fundo musical
de inusitado esplendor.

Os vagalumes pisca-piscam do lado de fora,
sendo percebidos na escuridão, através das frestas.
Até aquela velha coruja que teima
em frequentar a cumieira do rancho,
ali permanece imóvel, observando...

O ambiente à média-luz torna
os rostos mais expressivos.
Olhos mais brilhantes...
Jeito, apenas jeito misterioso.

No reponte das inspirações que brotam,
é o poeta que fala.
Fala, não. Canta.
Por ânsias e rimas.

Não! Os poetas não falam e não cantam.
Interpretam os deuses.
São os próprios deuses.

Cabe a eles a glória de estarem entre os deuses sendo homens
e de estarem entre os homens sendo deuses.
O transcedental etéreo,
que se faz idéia, ganha a noite.
Esta se faz cenário para o devaneio.

Os sons atávicos desses versos mágicos,
vão inundando as almas desses progênitos.
E os humanos, que não são deuses,
em noite larga, ouvem os deuses,
pela voz humana.
É a estesia dos talismãs.
E os humanos tocam nos deuses
pela graça eterna do Te Deum crioulo.

Sob as luzes de sua própria luz,
Dom Telmo balbucia versos.
As suas palavras, palavras não, poemas,
embalados pela guitarra e pela brisa suave que beija a relva,
ganham forma.

Da conjunção dos versos vai nascendo o enredo,
que se faz romance.
E do romance brota o amor, que se faz tertúlia.
E as tertúlias são as primaveras de todos os amores,
que fecundam poetas.

E ele aí está. De corpo e alma,
mais de alma que de corpo,
a falar de enredo.
A preludiar romance.
A irradiar tertúlia.
A fecundar amor.

Porque,
se pensam que nesses corpos rudes,
de homens brutos,
temperados pelas geadas e pelos rigores da lida,
não existe amor,
então,
apaguem a lamparina!
Afastem os tições!
Encostem a cuia!
Calem a guitarra!
Silenciem o poeta!
Suspendam o trago!
Apaguem os pitos!
E avisem as estrelas!

O mundo cambiou.

Nada mais embala os sonhos
desses vis mortais,
que nem mesmo puderam ser crianças.
Os brinquedos de terreiro,
os banhos de cascatas,
a bola de bexiga,
os jogos de tava,
as rinhas de galos,
as engenhocas e as arapucas,
tudo isso é cinza.

Os tropéis de cavalos,
o mogido das reses,
a sentinela dos quero-queros,
a fidelidade dos cães,
o braço forte do esquilador,
a panela preta sobre o braseiro,
a ronda e o rodeio,
sumiram da paisagem
e dos postais.

Os olhares furtivos dos namoros,
as quadrinhas da meia-canha,
as faces rubras do primeiro cortejo
e as batidas aceleradas dos corações aflitos
ao primeiro beijo,
isso é nada!

Nada!
Diante do que já veio e do que está por vir.

Não, senhores,
Os sons dessa garganta santa,
o encanto dessa noite tíbia,
o resplandecer desses olhos cálidos
e o pulsar dessas veias loucas,
ante a magia desse canto-chão,
não é uma pantomima.

Não é uma representação do real.
É o real! É a vida! Pura e simples.
Real, crua e verdadeira.
Viva e soberba.
Fecunda e pura.
Numa simples rima.

Este velho gaúcho não é um retrato da vida real.
É a vida.
Canta a vida.
E a vida imita o seu canto.