PELOS CAMINHOS DAS CHEIAS

Jose Luiz Flores Moró


 

Mas “oigate” mês de março

Caborteiro e enchuvalhado !

Chorando léguas de mares

Sobre os destinos molhados!

 

No chão submerso

Das vilas ribeiras,

Apenas reflexos de um céu flanescente,

Como se no fundo

Não houvesse o imundo

Lodo das enchentes !

 

O rio, esse eterno andejante companheiro,

Que sempre venerado e devorado

Na fome insaciável das cozinhas,

Agora,

Bem mais rebelde,

Tem olhos de fundos d’água

Pros alicerces fincados

No desnível das barrancas

Que, como ninhos de gaivotas,

Prendem casas ribeirinhas.

 

No suave embalo das águas

O barraco balança

Uma antiga esperança

Que bóia no leito

Do Ibirapuitã...

 

São todos veleiros dos mares rurais

Que um dia aportaram

No cais da cidade

Fugindo de um monstro chamado descaso

Que a lei dos mandantes

Não quer derrubar !

 

... e mais velas e velas

Atracam no porto

Inundado as  barrancas,

Que o rio, enfurecido,

Não hesita em afundar !

 

No rol das notícias

A imprensa comenta

A cidade e o estado decretam o estado,

E a calamidade se torna mais pública.

 

O rio vai ganhando águas

Redemunhas... redomonas...

E as casas que são tragadas

Viram barracas de lonas !

 

Nessa vida molhada

De “bóia” doada,

Quem tem quase nada

Tem nada de vez !

 

De olhar absorto, de longe, observam

Os barracos que dançam

Uma antiga esperança

Afogada no leito

Do Ibirapuitã...

 

Arrastam no barro,

Além da miséria,

A safra singela

De inço e favela

Que a dor da seqüela

Colheu na cidade!

 

As unhas da águas

Groseiam os flancos

Sugando da terra

Milhares de apojos,

Qual taipa de erva

Num mate lavado,

Virado e encilhado,

Desbruga pro bojo!

 

Se tornam afogados

Da curiosidade

Que a luz da cidade,

O progresso e a vaidade

Levaram à porteira dos ranchos rurais !

 

Têm changas na pesca,

Mulheres que passam as tardes nas beira

Gastando os dedos da mãos lavadeiras

Em linhos de roupas

Que nunca são suas.

 

Além, onde as águas sugaram o horizonte,

Os olhos encontram, num mundo perdido,

O brilho do verde no campo infinito

De ternas lembranças

 

E aquela visão do gado correndo,

Do laço voando,

Do taura gritando

Que a rêz está presa,

Desata um soluço

De dor e saudade

Que as águas carregam

E amplificam em ribombos

No encontro das vagas !

 

O pingo no rosto da lágrima enchente

Transborda na alma

Que triste acompanha

O barraco que dança

Uma antiga esperança

Que bóia no leito

Do Ibirapuitã...

 

A tarde encharcada

De tanto aguaceiro

Se abranda na noite

De “miles” estrelas

Que acendem luzeiros

No sol da manhã

... então, lentamente,

As águas retornam

E tomam seus rumos

Em busca do mar...

Deixando um rastro

De sangue barrento

Grudado nas botas

Que tristes retornam...

 

E as réstias que emanam

Do brilho das águas

Acendem fulgores

Nos olhos molhados.

 

A tal de esperança

Que sempre renasce

Na volta do sol,

Amassa no barro

Que a enchente deixou

Os novos tijolos

De força e coragem

De quem, certo dia,

Já foi um ginete

Com auras campeiras

De um bom domador !

 

A luz é divina

E divino é o brilho

Que o sol extravasa

Nas vistas barrentas

Mirando prás águas

Que levam as mágoas

De mais uma enchente !

 

Então segue a vida

Normal como antes...

Mais um alicerce,

O prego na tábua,

O zinco por teto...

 

O sonho bonito

De ser proprietário

De um rancho no povo

Explode, de novo,

No peito do peão !

 

Até que, depois,

No ano que vem,

Com as águas da chuva

Do fim do verão,

Começa o martírio

De todos os anos...

 

...e, então,

Novamente,

O barraco balança

Uma outra esperança

Que deve boiar

No leito profundo

Do Ibirapuitã...