Nuances de Peregrinação

Joel Capeletti

 

Quando eu era piá

A gurizada do meu tempo atava

Bois de sabugo às caixas de sapatos

Para eternizar os eternos viajantes quixotes.

Cruzavam nas cercanias do povoado

Ou a frente das portas dos ranchos da vila,

Para despejar quinquilharias, leitões

Panelas, peneiras de palha e até frutas

Que a intempérie do sul não judiou.

 

Os homens desse tempo,

Esses que cruzavam

Aguilhada em riste,

Traziam semblantes finos,

Carregados de saudades e esperanças.

Ostentavam a dinastia carreteira

Que foi misturando sangues

Desde a invenção da roda,

Essa que é serventia das cambotas.

 

... de lá para cá foram escasseando...

esta lenta obsolência os foi engolindo...

mas, para os poucos restantes,

já ter carreteado é um atributo

de brava nobreza crioula.

A chuva e o mormaço temperava

A alma de coragem e paciência,

Formando sábios laboriosos,

Transponentes de léguas de solidão.

 

As carretas lembrando o poeta,

Pareciam caravelas singrando mares,

Abrindo pastos no verdor dos campos,

Na mais simples das analogias.

Vinham quinchados de santa-fé,

Em couro ou até de zinco toldadas

Faziam as vezes de paiol e prefeitura,

Carro de defunto e casa de família,

Farmácia de remédios e bolicho

Ou até não raro oratório ou prostíbulo.

 

Então revendo a história,

Desde os tempos de garibaldi,

Que arrastou em duas carretas,

Puxadas por duzentos bois,

Dois lanchões desde a lagoa dos patos

Até a lagoa do rio tramandaí,

Podemos dizer que esses quixotes

São cavaleiros da távola redonda

Peleando sempre de peito franco.

 

Com seus ponchos ao vento

Guri, que é grumete, e o cusco,

Perdidos na neblina dos tempos,

São os fiéis depositários das estradas

E desse transporte que sucumbiu

Porém, com obscura consciência,

Carregam no sangue a vanguarda

De ideologia e de pleno heroísmo

Que herdaram os ancestrais.

 

Ainda lembrar dos remotos,

Quando dizia-se a boca cheia,

Que moço com uma carreta

E quatro juntas bem parelhas,

Já podia casar e ter família.

Trazem os causo de bolicho,

Das voltas de mate ao pé do fogo

E enxergam, por vezes, fantasmas

No literal chiar das cambonas

 

Por isso, que, quando volto no tempo

No tempo de piá, de faz de conta -

Lembro deles, uns três ou quatro,

Solidários, educados e amenos,

Passando uma vez em cada mês,

Gritões para as suas oferendas

Mas calmos e pausados nas falas

Quando as “donas” das janelas

Ou dos parapeitos, negociavam...

 

Não é a toa, que, varando jornadas

Tragam conforto nessas penosas viagens

Talvez busquem na epopéia das carretas

Motivos bastante para retornar

Quem sabe mostrem nos olhos marejados

A independência de códigos e posturas

E que se entenda em todos os quadrantes,

Que foi em carreta de boi, por terra

Que a humanidade foi crescendo.

 

Por isso, hoje, quando vejo esses poucos,

Tranco lento, às beiras da sociedade,

Percebo no seu íntimo mais profundo,

Quando algum menos informado

Cria coragem para interromper

A jornada e lhes pergunta incauto.

Por que não trocam seu obsoleto

Meio de transporte por algo melhor,

O porque da perseverança infinda.

 

Eles se recusam por razões claras

Talvez pelo orgulho de controlar,

Plenamente seu modesto ciclo de vida

Por isso, nessas oportunidades,

Quando são parados pelas ruas

E essas perguntas insensatas

São feitas, educada e dignamente,

Quebram o espelho das retinas

Baixam a cabeça e nem respondem.

 

... com suas naus preguiçosas,

gemidos dolentes e rastros compridos...

austeramente seguem em frente...

e, os que ficam com suas indagações

sem serventia e sem respostas,

deveriam saber que eram inoportunas

e, pelo desagravo, seria providente

desculpar-se pelo inconveniente

ou envergonhar-se de ter perguntado.