Dos Restos de Um Campeiro Só

João Carlos Fontoura

 

Esse meu jeito triste de ser.

Esses meus olhos cansados

De tanto estradear o destino

E essa minha estampa,

De pilchas desbotadas,

Foi a vida que me deu.

 

Os caminhos que trilhei sozinho

E as picadas que abri a lo largo

Jamais alguém há de apagar

Porque foi buscando horizontes

Que deixei no tempo

A marca do meu próprio rastro.

 

Homens e tempos mudaram

Pois, o homem partiu

A construir seu próprio mundo

Nas asas de um tempo novo...

E eu, que sou de hoje,

E vivo num tempo velho

Talvez seja por isso

Que sempre mateio solito.

 

Madrugada...

A cheia clareia os campos,

E eu mateio em silêncio

Ao pé de um foquito miche.

As labaredas trançam

Uma dança esquisita

E os grilos alteram os cantos

Como a acompanhar

O bailado das chamas.

 

O fumo é o mesmo.

A palha igual.

E entre os dedos trêmulos,

O palheiro, que é parceiro do mate,

manheiro, teima em ficar apagado

 acendo novamente.

Não mais que uma tragada,

E volta a se apagar...

 

Então, rumino reminiscências

E volto aos tempos moços.

Aqueles da voz em calmaria

Que até o silêncio pausava em si

Pra não desbotar

Da voz de um payador,

Que mesmo sem cantar,

Encantava a noite.

 

Sim, um rodeio de almas

Vem lamber sal no mesmo cocho

E bebem, em mim,

A seiva  da madrugada.

Mate amargo

Cevado por gotas de orvalho

Que a noite chorou,

Quando os tauras partiram,

Pra nunca mais voltar.

 

Essas são as raízes

Que brotam e rebrotam

Em minhas veias

Por isso, não há quem arranque

A essência de um campeiro

Forjado pelos galpões,

Sovado de catre e lombilho,

Domado pelas rédeas do destino.

Curtiu os sonhos

Na solidão das estâncias.

 

Estátua viva do tempo,

Sem placas de homenagem,

Telúrica paisagem.

Tronco e raiz, campo e mato.

E o eco de outras vozes

Sai da garganta da noite

E vai arrepiando o pêlo

Dos andejos, que como eu,

Só trazem nas malas

As lembranças e a pele curtida

De tanto estradear a esmo.

 

E os quero-queros gritam.

E os urutaus cantam tristes na noite longa,

E as sangas correm mansas

Por entre os campos.

E os pirilampos formam nuvens de estrelas,

Entre o céu e o chão...

-  que pena que tudo isso

 não passe de imaginação.

 

Então...

Corro os olhos nas paredes negras do galpão

E a cambona chia seca

Como a prenunciar

O silêncio eterno

Do velho fogo de chão.

 

O mate já esta lavado

E sigo mateando

Ausência do que se foi

E do que eu era.

Do alarido constante da estância,


Nas vozes dos tauras

E berros de potros do ontem,

Para o silencio do hoje,

Que na distancia

A solidão fez tapera.

 

E  ali estão as cordas de doma

Paralíticas num gancho, penduradas.

E aqui estão os mesmos braços de ferro,

Para o machado e a enxada,

As mesmas pernas que calçaram esporas

E cortaram potros,

Íntimos desenhos de um passado terrunho.

 

De já hoje

Vejo que nem o tempo

Me distanciou da verdade

E a caborteira saudade

Adormece nas varas do peito.

E os sonhos se entropilham

Para gavionar esperanças

Que arrebentaram maneias,

E não se domaram.

 

Como o galpão,

Que a solidão envelheceu

No silêncio dos anos,

E, como as sangas,

Que as secas secaram.

“Quando lembro do que fui”.

É assim que me vejo.

O taura de ontem,  para o hoje.

Apenas um vulto

Entre a fumaça que sobe

De um triste fogo de chão.

 

Então um quero-quero louco

Rasga o silêncio da noite,

“Mas este de verdade“

pois, como eu

perdido nas asas, do vento

que o trouxeram para a cidade

campeia, talvez, seu último pouso.

 

Há, mas a noite é longa

Pra quem mateia solito.

E das vozes rudes,

Que o tempo emudeceu,

Sucumbem os murmúrios do vento

Que geme no alambrado

E um taura mateia em silêncio,

Como num ultimo adeus,

Mudo e profundo.

 

E esta pode ser a ultima imagem

Que a natureza galponeira bordou.

As verdades, que passaram a ser causos,

E os causos, que agora, são verdades

Retratos da evolução

Que este guapo não acompanhou.

E quando ele se for

há de ser

O último moirão de pau ferro

Que os alambrados da essência tinha

E aos campeiros,

E a nós, que somos trama desse alambrado,

Resta a trilhar os novos sonhos

Ou esperar que o tempo nos leve.

 

Então vou alçar a perna

Para o último mate

Pois, quero morrer

Como as paredes do galpão

Que o tempo

Vai transformando o tijolo em pó

Pois, não sei,

Se tudo que me resta

Não passa de sonho

De um campeiro só.