Payada do Negro Lúcio

        Jayme Caetano Braun


Vou tenteando na cambona
Já bem abaixo do meio,
Lá pras bandas do rodeio
Ouço um berro de mamona;
Aqui guitarra e cordeona,
Chimarrão, fogo de angico;
O sol já com braça e pico
Neste final de janeiro
Que vai indo mais ligeiro
Do que soldo de milico!

Mateando meio solito
Porque o patrão e a peonada
Já saíram pra invernada,
Há muito tempo, cedito,
O sábado está bonito
E a indiada aqui da fazenda
De tarde se vai a venda
E aos bolichos do caminho,
Ou então, beber carinho
Nos braços de alguma prenda!

Mas enquanto eu chimarreio
Neste morrer de janeiro,
Meu pensamento chasqueiro
Se aviva, mascando o freio
E sai, a pedir rodeio
Nas lembranças, retoçando;
Eu me paro, recordando
As falas do negro Lúcio,
Muito maior que Confúcio
Pra filosofar trançando!

E ele sempre me dizia,
Enquanto tirava um tento,
Naquele linguajar lento
Cheio de sabedoria:
- A noite é a ilhapa do dia
Na argola da escuridão,
É quem garante o tirão
Em todas as lidas sérias,
Neste varal de misérias
Que é a existência do cristão!

Deus não fez rico nem pobre,
Peão, patrão ou capataz,
Isso é o destino quem faz
E, como é, não se descobre,
O nobre que nasce nobre
Nem sempre assim continua;
Pra beleza da xirua
Ou cavalo de carreira
Não adianta benzedeira,
Nem reza ou quarto de lua!

Enquanto filosofava
Naquele estilo sereno
O semblante do moreno
Parece que se iluminava,
A vivência é que falava
Naquela conversa mansa
E, no fundo da lembrança,
Inda o escuto a reafirmar:
- Parar não é descansar
Porque estar parado, cansa!

Dele mil vezes ouvi
O que tem que ser, será,
Por longe que o homem vá
Jamais fugirá de si
E com ele eu aprendi
As cousas da natureza,
A fidalguia, a franqueza
E aquela velha sentença:
- Atrás da cinza mais densa
Existe uma brasa acesa!

E chego a ouvi-lo fazer
Junto dum fogo de chão,
Uma grande distinção
Entre existir e viver;
Filho, dizia, morrer
Não é mais do que uma viagem,
Por isso não é vantagem
O forte fazer alarde
Que, às vezes, pra ser covarde,
Precisa muita coragem!

Inda vejo o conselheiro
Que evoco com devoção
Naquele estilo pagão
De Confúcio galponeiro
Que me dizia: parceiro
Nesta existência brasina,
Cada qual traz uma sina
Que força alguma desvia
E nada tem mais valia
Que as coisas que a vida ensina!

Filho, a verdade, verdade
Que nenhum sistema esconde
É que o povo não tem onde
Suprir a necessidade
E vive pela metade
Abaixo de tempo feio,
Vai explodir, já lo creio,
A tampa dessa panela,
Nem adianta acender vela
Pro negro do pastoreio!

Como encontrar os perdidos
Num país deste tamanho,
Se venderam o rebanho
E os homens foram vendidos,
Se os chamados entendidos
Falam de cara risonha
Defronte a crise medonha
De estelionatos e orgias,
Quem mente todos os dias
Vai ficando sem vergonha!

Aqui o Rio Grande isolado
Pela mãe pátria madrasta,
Dia a dia, mais se afasta
Do poder centralizado,
Mesmo que guaxo pesteado
Botado de quarentena,
Quanto ao capataz, que pena,
Não serve para o Rio Grande
Na hora de ficar grande
Se abatá e se apequena!

Na hora de dizer: pára!
Àqueles que nos ofendem,
Desrespeitam, desatendem
Ao Rio Grande tapejara,
Não sei porque, esconde a cara,
Quando a ocasião é mostrá-la,
Calçar o pé, erguer a fala
Porque esta terra pampeana
Não é a "casa da mãe Joana"
E nem tão pouco senzala!

Não é ofensa, capataz,
É que os homens desta terra,
Adquiriram na guerra
Direito de estar em paz,
Dentro dum clima capaz
De viver em harmonia,
Sem toda essa vilania
De boicotes e de ameaça
Que estão fazendo, de graça
À velha capitania!

A própria carne importada
Lá de fora, é um desaforo,
E o calçado, há tanto couro
E gado nesta invernada
E arroz da safra passada,
Pra que essa compra mesquinha,
Querem nos dobrá a espinha
E nos cortar a garganta,
Mas Rio Grande, não se espanta
Como se faz com galinha!

Que lindo se o presidente
Em vez de passear na Europa,
Passasse em revista a tropa
Deste país continente
E num gesto inteligente
Viesse ao Rio Grande fronteiro
Que já era brasileiro
Antes mesmo de Vespúcio
E levasse o negro Lúcio
Pra servir de conselheiro!