SILÊNCIOS DE UM FIM DE TARDE

Guilherme Collares


Silêncios de um fim de tarde
beijam a poeira da estrada
que tanto boi já pisou...
Um pensamento atropela...
... campeando rastros de um tempo
que foi meu tempo...
... e passou.

Na quietude do mormaço
uma cigarra clareia
as cordas de um canto triste
que, ao fim da tarde, restou...
E cada nota extraviada
evoca a sombra emponchada...
... sol... peçunha... casco... baba...
... campeando rastros de um tempo
que foi meu tempo...
... e passou.

Onde estás, raça tropeira?!...

... a voz de uma raça inteira
leva a carga no meu peito
pedindo o som de uma voz!...

Num trote manso, estradeiro,
eu busco o sonho tropeiro
que vive em cada um de nós!

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Minha prece rasga a tarde
contraponteando a coscoja
do gateado escarceador:

- Santa bruxa dos banhados
que enreda a crina da eguada
e afina o canto dolente
das seriemas andarilhas...
... pra’onde foi aquele tempo
do tranco manso na estrada,
mastigando a polvadeira
de uma lenta viração?!...

- Pra onde foram os ponchos,
pingando a sina fronteira
numa cama de pelego,
levantada a mata-olho?!...
... de cabeça bem tapada
pra proteger do sereno
e livrar da cerração!

- Santa bruxa dos banhados
que cantas pelos cincerros
nos lamentos das madrinhas...
... por onde andam as águas
que aqueceram tantas yervas
e espantaram tantos sonos,
nos tisnados das cambonas?!...
... adoçando as melodias
dos aboios solitários...
... rondando a vida boieira
nas gargantas redomonas!

- Por andam os berros
de tanta tropa de abril
que mudou rumo e querência...
... rezando a prece da ausência
na baba dependurada...
... e a fria reminiscência
do rouco estertor de morte
na marreta da charqueada?!...

- E as guitarras destes tempos...
lembrarão da voz dos ventos
cantando a vida tropeira,
perdida da evolução...
... quanta milonga sentida
vive na voz desses ventos...
... repontando as melodias
que trago no coração!...

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- Olha a estrada boi!...
- Boi, boi, boi!...

... e um pedregal na canhada
responde o grito da raça
numa tarde de verão!...


- Olha a estrada boi!...
- Boi, boi, boi!...

... explode o grito da raça
ecoando na imensidão!...
Onde estás, raça tropeira?!...

... esta garganta estradeira
clarina forte o meu grito;
remontando à sorte ingrata
desse progresso “bendito”,
que extingue sem ter consciência
e expurga, sem mais conflito
que deixar - sem voz nem glória -
um pedaço dessa história
perder-se no esquecimento

do más allá dos proscritos.


Onde estás, raça tropeira?!...

... silêncio nas invernadas
clamando berros de touro
e vaca chamando a cria...
... que o nosso tempo olvidou...

Meu sentimento estradeiro
- perdido num mundo novo -
procura a luz de um cincerro...
... campeando rastros de um tempo
que foi meu tempo...
... e passou.

Onde estás, raça tropeira?!...

... e as vozes da raça inteira
bebem som na minha voz:

- Olha a estrada boi!...
- Boi, boi, boi!...


... e eu vivo a raça campeira
que formou cada um de nós!

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Silêncios de um fim de tarde
respondem restos de um grito,
na mesma estrada comprida
que tanto boi já pisou...
... e eu me perco no passado,
redivivo nesse grito...
... campeando rastros de um tempo
que foi meu tempo...
... e passou.