Romance do Tio Abel

Guilherme Collares

 

Nove leitos de hospital,

paredes e rostos alvos...

...e o Cristo crucificado,

olhando - compadecido -

aquele arrastar de cruzes

de miséria e de doença...

...restolhos de tempo antigo

naquele quarto de dores.

 

Pinga o soro endovenoso

em contraponto ao gotejo

de uma sonda intra-uretral...

- Eu pareço um surrão furado,

água que botam por riba

sai dereto lá por baxo!

E um xistoso e dolorido

sorriso, de meia-boca,

aviva o rosto do Abel.

 

Aquele corpo que outrora

soube agüentar muita lida

de cercado, de mangueira

e de lombo de cavalo,

hoje afocinha no pasto

- no sobre-lombo de um pealo -

de oitenta anos bem postos

que a vida, porteira-a-fora,

vem lhe ajeitando a mangueada

- costeada da “tar da prosta” -

direito à cruz de pau-ferro,

na costa de uma picada.

 

- Por que é que o tar Deus dos branco

faiz isso co´os negro véio?...

...por que é que a morte não veio

no estôro duma rodada?...

- E aquela tropa morruda

que nóis atiremo n´água

no Passo dos Enforcado

- Camaquã de gaio-a-gaio -

e o meu gateado cabano

se entregô pra correnteza...

...não fosse a cola dum tôro

que me cruzô no costado!...

- Por que é que o tar Deus dos branco

não me feiz essa gauchada?...

 

- Morrê não é o bochincho!...

...morrê sozinho é que é!

- Não tive fio o muié

que me ajudasse estas hora.

- E essa mardita demora

em dá co´a cola nas pedra!

 

- E o neto do patrão véio,

que hoje trabaia no povo,

nessa tar de capitar...

...quando guri, só andava

grudado na mi´as bombacha...

...por que é que tempo não acha

pra vê os que le pertence?...

 

- Moça, óia aqui...

...o meu braço tá inchando!...

 

A enfermeira...contrariada

com a pouca remuneração,

sem a menor caridade

ou compaixão ao seu próximo,

ainda xinga o negro velho

quando a agulha sai da veia.

 

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- Quem será que vai cevá

o mate do meu patrão?...

- Quem será que vai ficá

im riba do fogo grande

pra não dexá isfriá as marca

nos dia de marcação?...

- Quem vai insiná os negrinho

como se encia um cavalo?...

- Quem vai descascá marmelo

e mexê tacho de doce

no calorão do verão?...

 

- Quem vai mostrá pros mais novo

o rasto da capinchada

e o sinar das resbalada

nas barranca dos arroio?...

- Quem vai insiná os negrinho

a pialá de bolcado?...

- Quem vai desfazê os mandado

quando a tormenta se enfeia?...

 

- Quem vai - de garganta cheia -

cantá um chote bem marcado,

fazendo viola e costado

pra cordeona botoneira?...

 

- Quem vai contá pros negrinho

do tempo em que o avô deles

boleava toro aragano,

das gadaria bagual?...

- Quem vai mostrá pros mais novo,

ou pros criado no povo,

que home e cavalo novo

se conhece pelos óio?...

 

- Tá na hora do remédio,

abre a boca, seu Abel!

 

- Isso é amargo como um fel...

...se, ao menos, viesse um mate!...

 

E um sol ilumina o rosto

desbotado e descarnado,

num sorriso de alegria,

que há muito já não saía

da boca do negro velho.

 

- Trouxe um mate Tio Abel...

...custei um pouco, mas vim...

...acaso o senhor achava

que o seu negrinho mimoso

não ia deitar o toso

pra cuidar do negro velho?

 

- Acaso o senhor pensava

que o seu negro não lembrava

daquele tempo passado,

quando só andava grudado

nas dobras da sua bombacha?

 

- É certo que lhe agradeço

por me ensinar o que sei...

...e se achei rumo na vida

sei de pronto, e com certeza,

que é por saber com clareza:

trago na alma a firmeza

que dos antigos herdei.

 

- Agora sim, Deus dos branco,

que o meu negrinho já veio!...

...agora esse negro véio

pode morrê descansado!...

...que os tempo não são os mesmo

e os home tamém não são!...

...mas quem plantô bem-querença

nos cercado da amizade,

colhe amor e leardade

nas safra do coração!