O BAILE DOS CACHORROS

 

Guilherme Collares

Foi num tempo, há muito tempo

Que este estória se passou.

Tempo que os bichos falavam

-Minha avó, assim contou:

 

A cachorrada haragana

Que nestas pampas vivia

Por todas as qualidades

Que, em verdade, possuía:

Sua grande lealdade,

Amizade e harmonia,

Foi premiada com um baile

Por Cristo, Nosso Senhor.

A ser feito em campo aberto

-Lugar bento e de valor.

 

O alarido era grande

Da “perrada” chimarrona.

Da serra até a fronteira

Da fronteira ao Uruguai,

Desde as praias do Rio Grande

Às coxilhas de Queguay.

 

Diz que por ordem maior

-talvez do próprio São Pedro-

Encomendou-se o conjunto

Que animaria o pulguedo:

Quatro bugios roncadores

-dos campos do alto da serra-

Bicho que canta muy lindo

-crioulos aqui da terra-

Dois Magangás Correntinos

Com cordeona botoneira;

Um Coati de bandoneon;

Dois Graxains guitarreiros

-ponteadores de primeira-

Um Pica-pau no pandeiro

Fundamentando a camanga

-e tava pronta a vaneira!

 

E a cachorrada latia

Faceira com a novidade:

 

-Um fandango deste porte

Vai ser bueno de verdade!

-Se a sarna me afrouxa o couro

Bamo vê se não dô pata,

Arrastando as alpargata

Co’as cusca do Cerro do Ouro!

E como cachorro e gente

Não sabem fazer junção

Sem terminar em peleia:

 

-Me disse a Jaguatirica,

Decerto loca de inveja,

Que joga até a cor das pinta

Que o baile vai dar em treva!

 

-Vai dar é furdunço feio

Se caso a gata atrevida

Vié bancando a metida,

Se entroduzindo no meio.

 

-Lá no bolicho da costa

Um Leão Baio bebia,

Fanfarronando borracho

Que ia dança de espora...

 

-Não viu que tava oitavado,

Num canto contra o balcão,

O cachorro chimarrão

Mais brabo da raça veia!...

 

-No resultado da história

O tal felino valente

Dormiu o resto do dia

Com dois mangaço na idéia!

 

E assim corria a notícia,

Causando grande algazarra,

Como em qualquer ocasião

Que prenuncia uma farra.

 

Na tarde do tal fandango,

Numa várzea muito linda,

Abençoada por São Pedro,

Na costa do Camaquã;

A mando, como se sabe,

De Nosso Senhor Tupã,

O arcanjo Gabriel

E sua escolta celeste

Iniciam a função:

De limpar, fazer a copa,

Cortar chirca e mata-lho;

Quinchar o carramanchão.

 

E já desde muito cedo

A coisa já estava armada:

Pois era imensa a matilha

De tamanha cachorrada.

 

E, de fato, prenunciado

Que a coisa ia ficar feia,

Já davam mostra do pano

De como cachorro e gente

Não sabe fazer junção

Sem terminar em peleia.

 

Chegado a hora do baile,

E tamanha confusão,

O arcanjo Gabriel,

Juntamente com seus anjos,

-que era polícia da festa-

Veio trancando o garrão.

 

E gritou pra cachorrada,

Com jeito já meio brabo:

 

-Vai começar o fandango!

Mas por ordem de São Pedro:

Em terreno Santo e Bento

É de faltar o respeito

Cachorro dançando com o rabo!

 

Ordem dita é ordem dada!

E cachorro que passava

Pela entrada, já deixava,

-num imenso gancheiro-

Devidamente nomeada,

A cola, dependurada.

 

E o baile corria frouxo

No meio da polvadeira,

Enquanto a orquestra crioula

Tocava chotes, rancheiras,

E milongas e valseados,

Chamamés e chamarritas

E mazurcas e vaneiras.

 

Quando não mais que num upa

-e por causa de cadela-

Estourou a confusão:

Diz que um galgo castelhano

-Correntino ou Entre-Riano-

Acostumado na lida,

Escondeu palmo de adaga

Nas costelas de um cuscão.

 

E no mais, já nem precisa

Se dar mais explicação:

Derrubaram o candeeiro

E o fogo dos trinta e oito

É que serviram de lume

Pra quem queria função.

Quando o arcanjo Gabriel

-com mais oito provisórios-

Carregaram no entreveiro

Pronto e de talher na mão,

Só viram a cachorrada

Que espirrava porta-fora,

Disparando alvorotada,

De medo da confusão.

 

E por sair tão ligeiro,

Cada cusco que passava

Pela entrada, manoteava

Qualquer rabo ali à mão.

 

Houve até alguma mais maula

-riscado a relho dobrado-

Que nem quis pegar a cola

Que ficou no tal ganchão.

 

Taí o cusco rabão!

 

E por causa dessa rata,

Nosso Senhor e São Pedro,

Resolveram –com justiça-

Não desfazer a trocança

De rabos, do tal bailão.

 

E é por isso que o cachorro,

Quando cheira outro cachorro,

Vai, então, direto ao rabo,

Procurando o próprio rabo

Que –com certeza- extraviou-se

Naquela triste ocasião.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poema participante da 12ª Sesmaria da Poesia Gaúcha.