Romance de Estrada Longa

 Eron Vaz Mattos

Nem sei se lembro direito,

o jeito que era meu pago!

A distância planta ausências

pelas estradas compridas,

e o tempo gasta a memória

groseando o cerne da vida.

 

Nessa época os potrilhos

nasciam, trocavam pêlo,

cresciam e pelechavam,

com massarocas nas crinas

pelos fundões das estâncias.

 

Os touros abriam covas,

apartavam as companheiras

formando xucros rodeios

pra viver nos rincões lindos

das invernadas antigas,

onde cimbravam os laços

na lida das campereadas;

e as mãos do vento passando

tiravam levianas plumas

arrancadas uma a uma

dos pendões dos macegais,

replantando na Querência

nas encostas e coxilhas,

Pastos, trevais e flexilhas

e o viço dos pajonais.

 

Era assim naquele tempo

a campanha do meu pago!

Até mesmo sem saber,

dormia a paz nos pelegos

fincada fundo na alma

e nos galpões dos campeiros.

 

As águas puras das sangas

brincavam nos pedregulhos,

e quando cheias, saíam

a campo fora do leito;

empurravam as capivaras

para os tranquilos remansos

nas beiradas dos lagões!

 

Nas recorridas de campos

tropeçavam buenos fletes

pelas tocas das mulitas

metidas rasas no chão,

mansamente refugiadas

na maciez dos seus ninhos,

no vigor dos pastiçais!

 

Ainda lembro, era assim

quando saí do meu pago!

 

Quando os tahãs levantavam

das cambotas das lagoas

para as alturas do céu,

e os casais de quero-quero

impeçavam a disfarçar

suas lindezas de ninhos

pelas saliências do chão,

a primavera chegava

trazendo flores e aromas,

vestindo com novas folhas

a nudez dos cinamômos.

A vida naquele tempo

se entretia encismada

nos encantos de si mesma!

 

À tardinha, os maçaricos,

qual ponta escura de lança,

sempre voltavam do sul,

as asas como panuelos

tremulando no espaço

entre o verde das coxilhas

e o sem fim do céu azul.

 

Nas noites de lua inteira

o sereno temperava

a voz macia das gaitas,

transpondo o melhor das almas

nas plumas dos dedos rudes,

sonorizando as janelas

pelos botões dos teclados;

 

as emoções retoçavam

na plangência das guitarras;

e as serenatas sobravam

para o tamanho dos ranchos,

expandindo as notas claras

bem além dos pára-peitos;

e entrando pelos portais

com flecos de estrela e lua,

embalavam os sonhos lindos

de tantas moças bonitas.

 

Passou tudo à meia-rédea

e quase nada sobrou!

 

A infância nesse tempo,

tinha mais tempo de ser!

Os guris tinham bodoques,

arapucas e mundéus

gados-de-osso ou sabugo

e o lombo dos petiços

para fazer escarcéus.

 

Era assim naquele tempo,

mas quase nada restou!

 

Ficou somente a memória

de um dia de primavera

quando saí do rincão:

 

O sereno ainda goteava

despencando sonolento

do longo beiral de zinco

na varanda do galpão!

 

Rondando o varal de charque,

do alto das timbauvas,

as calhandritas cantoras

melodiavam nas gargantas

com timbras de amanhecer,

a mais sublime beleza

que um canto já pode ter.

Distraído do silêncio,

um touro berrava ao longe

mergulhando nas canhadas!

 

As seriemas cantavam

repetindo as clarinadas

que desciam nas ladeiras

na direção dos banhados.

 

E no açude "das casas",

traíras soltavam botes

formando lentas maretas

como rodilhas se abrindo

no costado do juncal.

 

Um biguá abria as asas

como quem quer abraçar,

alguém que andava distante

e acabasse de chegar.

 

E a melena dos salsos

roçva a grama da taipa

lentamente ao balanço

de uma brisa de setembro!

 

Emalei poncho, encilhei

peguei cavalo de tiro

mais a mala-de-garupa

toquei a vida por diante

para soltar na estrada,

a buscar não sei o que

na incerteza das léguas

pelos volteados caminhos.

 

Segui o primeiro rumo

que o corredor apontou;

e o tramerio perfilado,

atilhos junto das cavas

como bigodes torcidos,

mudo me olhava passar;

 

com um cavalo de tiro,

poncho emalado nos tentos

mais a mala-de-garupa

e a esperança no olhar!

 

Passavam tropas, carretas,

andejos e domadores,

comitivas e tropilhas,

comparsas de esquladores,

todos "terseando" esperanças

na ilusão dos corredores.

 

E a cobiça de horizonte

me distanciou prá mui longe

plantando sinais de fogo

junto de muitas aguadas.

 

E a cada pouso um recuerdo

se estirava na lonjura:

Apenas quem estradeia,

sabe o que vale um momento

quando as lembranças dão volta

enleadas na ternura

e nas razões que detêm,

tironeando o pensamento

pra' o meigo rosto de alguém!

 

Mas tudo ficou prá trás

escondido na distância

disfarçada de horizonte

sem compreender infinitos!

 

Até que um dia o caminho

que abriga as poeiras cansadas,

confunde o rastro do pingo

e o coração dos andejos;

e mostra mil outros rumos

pra outros irem buscar,

com seus cavalos de tiro

poncho emalado nos tentos

mais a mala-de-garupa

e a esperança no olhar;

e quem sabe iguais a mim

irão minguando esperanças;

Co'a vida longe do pago

para a saudade voltar!