Duas Datas

Colmar Duarte

 


Na pedra somente o nome

e duas datas, mais nada.

Nas datas, os dois sinais:

para o nascimento, a estrela,

a cruz...para o nunca mais.

 

Estrela e cruz, duas datas

e uma vida entre as estacas

que marcam início e fim.

Como a cancha de carreira

de algum bolicho tapera,

coberta pelo capim,

onde se vê – de passada –

alguma estaca cravada,

marcando a cancha, ainda assim.

 

O partidor é uma estrela,

a cruz é o laço final.

Entre as duas, tanta estória

que o tempo não vai guardar;

que se um dia fosse escrita

pra que pudesse ser lida,

do início ao fim da vida

seria marcada igual:

maiúscula no começo,

no fim o ponto final.

Mas quanta interrogação,

espantos e reticências,

nas entrelinhas da vida

contida em seu coração?

 

Era uma vez um piazito

e um mundo por descobrir,

um medo de faz-de-conta,

bicho-papão pra dormir.

Distintos sons pra lembrar:

do pai, gritos com o gado;

da mãe, vozes de acalantos.

 

Depois, um viver de espantos

numa terra por povoar.

O ritual das madrugadas

em volta ao fogo de chão;

rodeios, domas, potreadas.

 

Ainda não tinha barba

quando veio o “23”.

O pai era maragato

e se foi daquela vez,

se juntar a Honório Lemes.

Uma tropilha de zainos,

uma espada, um mosquetão;

 

lenço vermelho esvoaçando ,

junto ao aceno da mão,

dando adeus, pra não voltar.

A vida seguindo adiante,

com seus ciclos naturais.

Num gateado de confiança

enfrentou o toro passo

pra um baile, uma carreirada

ou a sombra de um potreiro

na casa da namorada.

 

Casamento e rancho novo,

onde o amor foi morar.

Muito trabalho

e os filhos,

chegando como andorinhas

pra encher a casa de sons.

Depois a necessidade

de dar escola pra os piás.

a mudança para o povo,

deixando o pago pra trás.

 

O pago onde deixou nome

como campeiro de lei.

 

Não nascera esse cavalo

que o pegasse de mau jeito

numa rodada traiçoeira.

Vista e dresteza de sobra,

pisava a orelha do maula,

saindo sempre de pé!

Num rodeio era um respeito

quando apartava novilhos.

Amagava na paleta,

de pingo alçado no freio,

tirando “erguido” o franqueiro.

 

Se o boi olhasse o sinuelo,

bancava o flete no freio,

vinha ao tranco pra o rodeio.

 

Quando desatava o laço,

podia chegar co’a marca

que o bicho estava no chão.

Seguro e bem a cavalo,

um dia – por patacoada –

passou a mão no cabresto,

num arremedo de laço,

e fez passar a porteira

a zebua caborteira,

na cincha do seu picaço.

 

Noutra feita, um touro pampa

que refugava o rodeio,

boleou a anca e se veio

atropelando o cavalo.

Livrou o pingo da carga

e se juntou com o touro.

De encontro sobre a paleta

contra aquela massa bruta,

sem deixar virar de frente,

ia baixando o trançado

com toda força do braço.

 

A polvadeira subindo,

cavalo e touro rodeando

nessa peleia de morte.

Até que num de repente,

co’ajuda de deus e sorte,

o touro- tonto a laçaço –

alinhou rumo ao rodeio.

 

Tropelias como essa

eram coisas costumeiras.

Levaria horas inteiras

contando essas gauchadas

de quem, em qualquer serviço,

honrou sempre o compromisso

e nunca negou quarteada.

 

Mesmo sendo ventania,

pelos filhos se fazia

dócil, com voz de veludo,

quando contava uma estória

ou segredava acalantos:

“Dorme criança linda

teu sono doce e puro,

porque não tens ainda

cuidados com o futuro...”

E as mãos ásperas, pesadas,

calejadas pela lida,

eram suaves como asas

acariciando os cabelos

da criança adormecida.

 

Quando meus irmãos se foram,

buscando rumo e razão,

fiquei ouvindo seus “causos”,

vendo seu envelhecer.

 

Hoje sinto que essa pedra,

com duas datas e um nome,

resume a vida do homem

como num livro fechado.

E, ao relembrar o passado

como minha referência,

nestes versos choro a ausência

de quem fez tanto na vida

que aqui vejo resumida

a um nome com dois sinais:

 

uma estrela pra um começo

e uma cruz... pra o nunca mais!