Romance do Tropeiro Doido

Aureliano de Figueiredo Pinto

 

Já velhito, não perdia

uma tropeada comprida.

Com seus seis baios-ruanos,

bem tosados, cola curta,

os cascos bem groseaditos,

era um desses peão-de-tropa

que os capatazes não deixam...

 

Com seu chapéu de aba larga,

e o poncho que era um galpão,

e com todos os pertences

para a lida forte e dura

- desde avios de chimarrão,

maneadores de porteira,

até os trapos ensebados

prá empeçar fogo, chovendo.

 

Um quero-quero prá o sono!

E ademais sem uma queixa,

ou dúvida às ordens dadas.

Vaqueano como ninguém

de rondas , pastos e aguadas,

era um desses peão-de-tropa

que os capatazes não deixam...

 

Um dia a sua comitiva

afundou para as Missões,

a apartar gordo em Garruchos

no velho Juca Ramão.

 

E no primeiro rodeio,

logo um novilho afamado,

ficado de muitas tropas

levantou as aspas claras

direito ao fundo do campo.

 

Mas o velhito era desses

que os capatazes não deixam...

Estendeu o baio-ruano

no plaino de pedregulho.

 

Levantou o treze-braças

que fez um Vuuu!...no ar parado.

E quando o laço estirou,

no instante mesmo do golpe

o baio fincou a testa!

O velhito que atendia

boi, ilhapa e cinchador

(nunca este ruano rodara!

e o velhito, um saidor!)

também de testa se foi..

 

Ficou roncando, mortito,

e quinze dias roncou.

E lá, três meses esteve

num hospital das missões,

onde o Dr. Zé Gaspar

que em moço fora tropeiro,

o atendia com a ciência

e pena no coração...

 

E quando aos pagos voltou

parecia o homem de sempre

-ágil, vivo, despachado!

Servidor e sempre pronto

prá uma tropeada comprida.

Só diferente na prosa

porque o juízo perdera...

 

No inverno lidava em guascas,

e em madeiras de carreta,

ensinando ao seu netito,

como se faz a presilha

ou se remata um botão.

 

Como se prepara a lonca

e o romaneio de um laço.

Como se arqueia um canzil

ou se volteia uma canga.

Como se retova um par

de bem feitas boleadeiras.

Como se prepara um couro

ou desquina um maneador.

E nas conversas com o aluno,

era tudo mais por senhas,

e idiomas de meia-língua

que os outros pouco pescavam.

 

Ali por fins de setembro,

ou nos começos de outubro,

ia à invernada e trazia

os seus seis baio-ruanos.

 

Uma semana levava

tosando, groseando os cascos,

adelgaçando os seus pingos.

 

Já pronto para a tropeada

de todos se despedia...

Agora ninguém mais ria

da loucura do velhito.

Com seis ruanos por diante,

ia à coxilha defronte.

Lá, durante horas e horas

trabalhava como um taura:

- Apartava. Refugava.

 

Coava. Contava a tropa

e a ajeitava na pastagem,

com o flete lavado em suor!

- Tudo de imaginação!

como piazito brincando

de apartes de faz-de-conta...

 

Lá ia o neto buscá-lo

para o almoço e o descanso.

Ele acedia mas antes

logo pedia ajutório

para estender a tropa n'água.

Porque é um trabalho a preceito

largar a tropa na aguada...

 

De tarde, mudado o pingo,

o churrasquito na mala,

fazia a tropa marchar

até que, entre duas-luzes,

ao tranco, com calma e jeito,

se fosse cerrando a ronda...

 

De novo o guri o buscava

e afinal o convencia

que a peonada era boa,

podia rondar sem ele.

Podia ir pousar nas casas...

Se a noite não tinha lua

ele voltava à morada.

 

Mas nas noite de luar claro,

nas noites de lua cheia,

nem o neto o demovia!

Rondava a coxilha, ao tranco,

às vezes meio cantando,

até que clareasse o dia.

 

E foi numa dessas noites

de luar prateando as lagoas,

que amanheceu morto, lá no alto.

Com a rédea atada no pulso,

largo chapéu sobre os olhos

e o ruano olhando seu dono.

 

Primeira e única noite

que o taura dormiu na ronda...