Retrato de Juca Ruivo

Aureliano de Figueredo Pinto

No meu rancho...

rancho velho missioneiro (como cupim na coxilha)

desbarrigado no oitão norte,  desquinchado no oitão sul,

numa tarde de outono (outono já quase inverno)

veio chegando ao tranquito, um Ruivo de poncho azul.

 

Pediu pousada o andante...

Vinha do Quaraí...  percisava um descanso...

pra  jornada larga.

Fiquei desconfiado...  (cousas sem motivo!)

E de noite no fogão, com os olhos cravados,

mui pensativo,

o tal cinchava quietito o chimarrão de erva amarga.

 

Na noite o vento – ave grande, lidava

Por aninhar-se nas copas dos cinamomos.

E os galhos se alvorotavam com as largas asas de pluma

do lechuzón desconforme.

 

Uma coruja gritou no copiar do galpão.

E os cuscos acoavam  (se um não dorme, o outro não dorme)

acoavam na noite crespa bocando na escuridão.

 

Diacho de Ruivo mais quieto que diz que vem do Quaraí...

sombrio como mato grande...

mais empinado que um cerro...

calado como laguna quando tem céus dentro d’água...

Virá por “mala-cabeza”?!

 

Todo andarengo que vem de outros pagos

calculo que venha seguido de perto

pelas escoltas da própria mágoa.

 

Reajeitei os tições...  E a lavareda ondulou

como cabelos de gringa que por amor se afogou.

 

O Ruivo, o chapéu nos olhos,

ergueu o sombrero!

Mexeu-se no banco...

E me encarou despacito

como quem mira um parcero.

 

Foi como um sinal maçom...

De relancina

Nos entendemos mui bem:

Passei-lhe o frasco de canha, que ele encostou devagar

mas com força junto à boca, como uma boca de china

que se custou a beijar.

 

Ah!  – Ruivo...  se “Usted  lo viera” !

Se foi aos arreios... sacou a cordeona!

(cordeona com mais floreados do que pilcha de Oriental)

e já parecendo outro,

com garbo e sestro de potro

abriu a gaita campeira dentro da noite outonal.

 

Só quem ouviu se recorda

pra sempre, por toda a vida

dessa cordeona sentida,

de nostálgica dolência:

com choros de tecla e corda,

com gritos de peleadores,

e olhar campeando nos rumos de querendona querência.

 

Todo o pampa repassava na voz da cordeona

macia e brava, feroz e chorona.

terna, violenta, sentimental.

Fogaréus, lunaréus de incêndios e de ocasos...

Mortas legendas brotando à tona

de olvidado reconto imemorial.

 

Horizontes de mar. Plainos rasos.

Cruz de estrada dos ermos missioneiros.

Assombrações.  Contos campeiros.

Romances e casos.

 

Fronteira aberta para os castelhanos.

Selvas e serras Uruguai abaixo.

E o guapo penacho de heróis campechanos.

 

Depois, nas teclas mais finas

Ia contando de chinas

alarifonas,

que entre refugos e espantos

deixavam a não sei quantos,

nas caronas...

 

E as tartígradas, longas carreteadas...

E o umbu das lendas que não morrem.

E as canhadas  fundas onde primeiro a noite acampa.

E as machucadas do tempo, as caladas cansadas,

as sombras das mortas taperas do pampa.

 

Quando o Juca Ruivo encilhou

o pangaré, e descambou lá longe,

já nós dois,  índios soturnos, nos tratávamos de ermão...

E me deixou cevaduras de sua gaúcha mágoa,

Pra temperar a caúna das noites do meu fogão...

 

E onde andará o Ruivo amigo?

sombrio como mato grande...

mais entonado que um cerro...

quietito como laguna quando tem céus dentro d’água...?