ROMANCE DE DONA MOÇA

                                                                                       Apparício Silva Rillo

 

Quando meu rio Uruguai,

que é meu e de todo mundo,

dava curso e dava fundo

a buques de vigilância

com cachoeiras nas rodas;

 

Quando meu rio Uruguai,

que é meu e das lavadeiras,

viu balançarem bandeiras

de dois países nos mastros;

 

Quando meu rio Uruguai

viu recruzarem flotilhas

rindo em boca de canhões;

 

Quando meu rio Uruguai

dava curso a embarcações,

Dona Moça era mocita.

 

Seria quando? Não sei.

Minha história não tem datas

nem registra horas exatas.

Apenas - isto sei eu -

Dona Moça era mocita

e era moço quem foi seu.

 

Farda branca, galões e rubros,

olhos de fundos remansos,

um rio por pátria e em si.

Águas de enchente nos nervos,

na alma rasos de praia

sombreados por sarandis.

 

Señor Teniente o chamavam

sus marineros de allá.

Quando seu buque apagava

forças e brasas nas forjas,

su corazón ancoraba

nas barrancas de São Borja,

como um barco de ternuras

cansado de rioandar...

 

Dona Moça, a quem chamavam

-Mocita, nesse tempo,

abria claras janelas

no casarão e nos olhos

a ver passar su Teniente

-farda branca, galões rubros -

no seu passo marinheiro                                                                                                                                                                                                                                                    com embalos de convés.

 

Paixão de longe e acenos,

olhares e asas de lenço

como pássaro no ar.

Era a moça no sobrado,

era na rua o Teniente,

dos rios de mesma vertente

na dura busca do mar.

 

-Meu pai não quer - se dizia

Mocita de si pra si.

-Mamãe sabe e me tem pena.

Teve amores contrariados,

casou-se com quem não quis.

E por razões de família

o Teniente de flotilhas

amargava, como ela,

ter entre os dois a bandeira

brancazul de outro país.

 

Quão difícil compreender-se

que os separassem pendões:

um pano verde-amarelo

e um pano de branco e céu.

Que estranho e duro aceitar-se

-como Mocita o sentiu! -

não poderem encontra-se

jovens lábios que bebiam

das águas de um mesmo rio.

 

Numa noite veraneira

-o buque ao largo ancorado -

algo bateu à janela

de seu quarto no sobrado.

 

O vento? Quem sabe o vento?

Um vento, sim, de desejos

na pétala rubra de um cravo

-ave com fogo com asas -

com que a chamava em Teniente

(sombrero, capa e coragem,

alma ampla, mão em brasa).

 

Baixou do céu pela escada

lurgidos seios arfando,

coração posto nos lábios,

claras vésperas no sangue

ao ser timbrado a faria

de virgem e moça, mulher.

 

Juntaram rumos e cursos

dois rios que corriam sós.

Acenderam-se luzeiros

quando um frêmito de carnes

sagrou de amor e silêncios

as águas da mesma foz.

 

Houve olhos corujeiros

para o romance nochero

de Mocita e su Teniente.

O pai a ranger os dentes

como um tigre mal ferido

um coração ressentido

no seio de pomba triste

na mãe de outonos vestida.

 

Ficou a espuma do buque                                                                                                                                                                                                                                              -líquidas flores de alba

alumbrando a madrugada

nos caminhos do Uruguai.

Uma lágrima de séculos

nos olhos mansos da mãe

e fios de adagas chairadas

na dura raiva do pai...

 

Seria quando? Não sei.

Minha história não tem datas

nem registra horas exatas.

Apenas - isto sei eu -

Dona Moça era mocita

quando a história aconteceu.

 

Passou-se o tempo, barqueiro

da nave do desengano.

Pai e mãe descansam juntos.

Já não há raivas nem prantos

para dois que se plantaram

sob a cruz de um campo santo.

 

Ficou de pé o sobrado

-pedras, tijolos e cal.

Dona Moça, sombra nele,

móbil estátua de sal.

 

Dura de nervos e alma,

alvos cabelos num coque,

no rosto os últimos toques

de um sol raiado de rugas,

por onde, todas as tardes,

descem lágrimas que ela

não disfarça e nem enxuga.

 

Se emoldura na janela

a olhar o rio, desde ali,

-irmão do rio de salitres

que queima dentro de si.

 

Ah, se um dia, lá na curva

do Porto das Lavadeiras,

ventassem ao sol a bandeira

do buque com su Teniente:

farda branca, galões rubros,

sombrero, capa e coragem

e um hirto sabre no escuro!

 

O buque, com su Teniente,

de quem lhe sobra, somente

-além do diário presságios

num cravo cor de poente...