ROMANCE DA MULATINHA

                                                                                     Apparício Silva Rillo

 

 

Ali nascera e vivera

na velha Estância da Cruz.

 

Filha de quem? não sabia...

 

História velha corria

de uns amores proibidos

entre o patrão e uma negra

que certa vez se enforcara

numa manhã de tormenta

deixando fama de linda

mais a lenda de um cambicho

que quase perde o sinhô.

 

Ali nascera e vivera

na velha Estância da Cruz.

Branca demais para ser negra,

parda demais para ser branca.

 

Invejada na cozinha

pelas crioula e chinas

lidadeiras de fogão.

Tanto assim que o mate-doce

nunca chegava pra ela

quando corria na volta

passando de mão em mão.

 

E dona Branca, a madrinha,

que de raro em raro vinha

ali na Estância da Cruz,

nem mesmo a mão lhe estendia

se humildezinha pedia

que lhe botasse a benção.

Que diferença que havia

entre o jeito da madrinha

e a maneira do patrão!

 

Bom patrão e bonito,

aquele bigode branco

caindo ao longo da boca

que nem na sanga do açude

dois galhos de um só chorão.

 

Nosso senhor que lhe ajude

por ser tão bom, meu patrão!

 

Ali nascera e vivera...

era seu mundo a estância,

a casa branca, os galpões,

a sanga que se perdia

na lonjura da distância

o pasto pura forquilha,

o açude, a várzea, os capões.

 

Mais além - o que haveria?

decerto a cidade grande

de casario ajoujado

que nem tambeiro em carreta

(essa cidade de sonho

que jamais conheceria).

 

Porque seu mundo era a estância

o mundão que ela gostava

por conhecê-lo tão bem.

Gostava, sim e que tanto!

malgrado a inveja das negras,

malgrado o olhar da madrinha,

que a devassava e feria

como um punhal de silêncio.

 

Ali nascera e vivera

na velha Estância da Cruz.

Quanto tempo? quantos anos?

entre quinze e dezessete

tinha certeza segura,

os peitos já lhe pulavam

atrevidaços e duros

como dois frutos maduros

guardando sumo e dulçor.

 

E a graça serena e virgem

do andar de corça e potranca

na curva esquiva da anca

soleando ao tranco do passo.

 

E disso conta não dera

não fora o olhar diferente

doído como um laçaço

com que a madrinha a medira

do pé descalço à cabeça.

 

Só então se apercebera

da lenta e firme mudança,

tão moça feita e tão linda

mas dentro de si ainda

a mesma antiga criança.

 

E aqueles índio safados

que a perseguiam nos cantos

quando cruzava o galpão

fora decerto por isso:

pelos peitos atrevidos,

pelo boleado da anca,

por moça feita e por linda

que ela já era, pois não.

 

Então acendeu-se nela,

num de repente esquisito,

desejos de um peito forte

onde escondesse a cabeça,

onde escondesse a vontade

o querer... de não sei quê.

 

E o tempo, o tropeiro velho,

sem dar-se conta de nada,

tocando a tropa apartada

dos dias idos e findos.

 

Um dia chegou na estância,

montando um flete picaço,

um quebra de chapéu torto,

pala branco sacudindo

aos tapas de um vento sul.

 

Vinha ficar por uns tempos

para quebrar o corincho

da bagualada gaviona

daquela Estância da Cruz.

Tinha um entono de angico

o tal quebra domador,

jeito de tigre em peleia

e uns olhos negros queimando

mais que fagulha assoprada

de um tição de cerne bom.

 

E a mulatinha da estância

-coração maravilhado-

pelo torena chegado

de puro amor se incendiou.

 

Numa noite de minguante

fez-se o quebra seu amante,

colheu o fruto e a flor.

 

Se era alarife o torena!

boi roceiro acostumado

a cruzar por alambrado

sem deixar pelo no fio.

Por isso que ninguém viu.

 

E assim foi que ali na estância

ninguém bispou-lhe a manobra,

ninguém cortou-lhe caminho

e o torena que nem cobra

que enfeitiça passarinho.

 

Um dia, a tropilha pronta,

pro patrão pediu as contas,

conferiu bem e contou,

pôs o recau no picaço,

quebrou o cacho e ao passo

pelo mundão se rolou.

 

Nem um adeus, a lo menos,

para a moça que ali ficara

com jeito de sorro morto.

Foi ao tranco, o chapéu torto

fazendo sombra na cara.

 

E então a moça perdida

no puro amor machucada

ficou vendo a retirada

do seu quebra domador.

Também palavra não disse

feita silêncio e sem gestos

ficou pisando nos restos

do que já fora uma flor.

 

Só o riso da madrinha

quebrava a calma da tarde

como a gloriar o covarde

que a deixara ali sozinha.

 

Então, nessa mesma noite

-ninguém soube porque fosse-

a mulatinha enforcou-se

num galho do velho ipê,

que amanheceu florescido

como se houvesse entendido

que alguém morrera ao seu pé.