O PAI NAS FOTOGRAFIAS

Apparício Silva Rillo

 

Revejo as fotografias de família

- um vezo antigo de exorcização,

caça do tempo perdido

como nos romances franceses de Marcel.

 

A tarde é úmida sob o gris das nuvens

e é em tardes assim que me descubro

nos perfis esmaecidos em cinzentos

dos que, antes de mim,

sentaram à mesa de jantar de onde vim:

o pão, o vinho, os talheres em cruz.

 

Na mais antiga das fotografias,

meu avô paterno:

sua barba de imperador

de um condado de léguas na Fronteira

onde vacas pariam,

onde pastavam bois e voavam cavalos.

A seu lado

minha avó dona Chica e seus traços de bugra

(um desenho do álbum de Debret).

Ao seu redor crianças:

meu pai, minhas tias e tios.

Ao todo onze do sangue desse par,

solenes

como estátuas de praça,

olhando firmes

para o ponto de fuga de meus olhos.

 

Na mais antiga das fotografias

há um tempo parado

como um vagão sobre o trilho

sem a locomotiva que o tracione.

Debruns de traço leve a emoldurá-la

E um timbre onde se lê:

“Bartolomé Sambolino, Artista Photografo”.

 

Dela,

pelo tempo nos relógios de algibeira,

cresceu meu pai noutras fotografias.

 

Nesta que vejo,

moço e estudante entre colegas.

Noutra,

(para noiva Lélia)

de perfil:

o crespo ondeado dos cabelos

a morrer na gola alta da casaca;

o ângulo do nariz sobre o traço da boca;

os óculos de lentes redondas, a haste fina

cortando a costeleta antes da orelha.

 

E outras fotografias.

A terceira e a quarta,

a undécima delas – muitas!...

Em todas,

                        a boca severa

o lábio junto ao lábio,

o avesso do riso...

 

Eis, e de repente,

a fotografia do ano antes da morte;

o câncer por detrás da boca amarga,

os olhos em contida angústia me fitando.

(De todas,

a que me dói como um carvão aceso

na palma desta mão crucificada

que a sustenta como a um Cristo de carvão).

 

Ajusto o foco...

Dimensiono as lentes...

Fotografo a lembrança...

Nunca me lembro de meu pai sorrindo.

Se procuro acreditar que riu um dia

não terá sido nas fotografias!...

 

Os documentos são estes que revejo

na tarde em descendência para o chumbo.

Neles,

neles todos,

a tua boca amarga, pai, a esconder os dentes

que são o piano onde o riso tamborila

quando de adentro o coração comanda,

a música e a dança!

 

Não tenho ouvidos para ouvir-te o riso

nem olhos de memória para tê-lo.

E isso dói, pai...

É brasa viva na mão crucificada

- o fogo e sua roca de trabalho.

 

Sim, eu sei que tudo isso,

todo esse discurso de catarse,

poderia caber num só conceito:

- meu pai não ria nas fotografias

e eu não tenho memória de seu riso.

 

Mas às vezes, pai,

é preciso derramar esta angústia, de dentro!...