José, Segundo os Que Ficaram

(Memória para um Boticário Aldeão)

Aparício Silva Rillo

 

É muito, muito difícil,

fazer-se um poema de José,

como, sobre, a respeito

do avesso ou do direito

de José – quem seja

ou que não seja o de Drummond de Andrade –

do Carlos que poetou sobre José

e fez, de logo, o povo brasileiro

balançar de cima e para cima

a cabeça da alma

e dizer, confirmando:

Tudo já foi dito de/ sobre José.

 

Mas eu também sou duro

como o teu José, poeta mineiro-múndi,

e tenho lascas das pedras de Itabira

para riscar um talvez,

um quem sabe poema

sobre o meu / o nosso José

de São Chico de Borja, onde nasceu.

Esse que escrevia com PH

na lousa da infância

a palavra Pharmacia.

 

A que depois viveu

fonema por fonema,

sem esquecer a tônica de espada

sobre a vogal aberta do “a”

na sílaba do meio.

 

Veio-lhe de dantes,

do século passado em década de fim,

de uma pátria de bois e de cavalos

da Vila missioneira em solidão,

essa nave de drogas curandeiras

que navegou até ele em velame de gazes

pelas águas de curso da família.

 

E então José assumiu-se em seu destino

de Boticário (como antes era

na linguagem do povo e nos reclames

dos humildes jornais com notas campechanas).

Decifrava receitas de doutores barbudos

com severas escritas de hieróglifos.

E fabricava ungüentos e pomadas

e poções e xaropes

Com suas mãos de ágil alquimista.

E colocava de pé os artistas do Circo

que vacilavam na barra do “trapézio”

quando a doença brincava de palhaço

e o rufo dos tambores anunciava

a Morte equilibrista em seu ato final.

 

Mas José nunca se imaginou o Grande Mágico

capaz de fazer uma flor da essência do nada

e dela, a uma dança de dedos,

uma pomba de alvas que voasse.

Não.

José apreciava era estar na platéia

roendo amendoins e comendo pipocas

-como todos,

iluminado de longe pelas lâmpadas

que apunhalavam de cima os tapetes da arena

onde os Admiráveis justificavam

os mil-réis dos ingressos.

 

Estar próximo (e sempre)

da fragilidade vital pela doença

- por detrás do balcão, entre vidraças

que guardavam segredos no rótulo dos frascos -

deu-lhe a noção inteira de si mesmo

por saber-se, como os que batiam na porta

a horas mortas,

transitório e frágil. E falível.

(Mas apesar de tudo – necessário).

 

Cantos de esporas nas calçadas gastas

cortavam noites pelo fio das horas

e o acordavam pela mão da aldrava

que anunciava temores e angústias

no coração dos homens que o buscavam

no galope de urgência dos cavalos.

 

E então José serviu nessa medida

de campeiro pagé de fama vilarenga

aos homens e mulheres que o buscavam

para o milagre que estava nesses frascos

na ordenação das corretas prateleiras.

Claro,

José gostaria de servir-lhes milagres:

maná, água tornada vinho em sua bilha,

todo o poder de Deus num comprimido

de simples aspirina.

 

Mas se sabia o instrumento (apenas isso)

e aos ansiosos de fora que o buscavam

lhes passava o possível – seu limite.

 

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José,

muitos não estiveram a teu lado

na véspera da ultima parede

para ouvir, araponga de ferro,

a colher do pedreiro

sonando como um sino, por finados.

 

Eu não estava lá, José.

Eu não quis estar lá

Para reter-te vivo, em teu afã.

 

Eu estava, sim,

e milhares de homens e mulheres

e almas descendidas

a bater punhos nervosos na madeira da porta

da tua Pharmacia em PH, antiga.

 

Mas tu, José,

tinhas partido dela.

E no punho da aldrava um bilhete dizia

que não virias de volta a teus balcões.