APARÍCIO SILVA RILLO

CANTO DE ADEUS PARA UM PEÃO DE ESTÂNCIA

Apparício Silva Rillo para um peão de estância

 

 

I

Não vou cantar teu vulto de legenda

perdido no impreciso dos tempos e das lendas.

Nas entrelinhas da história se retraça

a tintas de suor somado a sangue

a gesta de que foste herói sem nome,

o bruto lidador temperado a minuanos,

a fumo de cartucho e guascaços de sol.

 

Não vou cantar teus feitos de guerreiro xucro

que ao grito de um caudilho abandonava rancho,

abandonava mulher, filho e querência

pelo gosto no mais de entreverar-se lindo

aos que honravam como tu a mesma cor de lenço.

 

Não vou cantar tuas mãos sofridas no trabalho

mãos que empunharam lanças, espadas e trabucos

e a rabiça do arado, e a boleadeira e o laço

quando a faina da guerra sucedia

o silencioso labor do amanho a terra

e o campeiro lidar do pastoreio.

 

Não vou cantar o teu amor a china,

a tua devoção às armas e ao cavalo,

nem o respeito que te mereciam

a coragem pessoal, o desassombro,

as cores da divisa partidária,

o fio de barba que selava um trato

- sagradas leis de tua fé-de-ofício.

 

Não vou cantar o que realizaste

na silenciosa construção da grandeza do pago.

 

Não vou catar o que foste.

Vou cantar o que és – peão de estância.

 

 

 

II

“A gaita matou a viola,

o fósforo matou o isqueiro,

a bombacha o chiripá

e a moda o uso campeiro.”

 

E a ti, peão de estância,

que te mata ou vai matar?

 

Com teu permisso, índio velho, eu te direi.

E te direi com este meu canto triste

que é um grito de urutau fazendo coro

a um toque de clarim em retirada.

 

É que passou teu tempo, peão velho.

É que não cabe na moldura estreita destes dias

a tua estampa de anônimo e de xucro

que se plasmou em plainos e horizontes,

em larguezas de alma e infinitos de audácia.

 

É que vieste ao tranco pela história a fora,

sem pressas de chegar, sem anseios de longe.

Mas o tempo, taura velho,

a vida que se chama evolução,

mui poço demorou no teu costado

e cansada, talvez, de vir batendo estribo,

a lo largo no mais, te foi deixando atrás.

 

E foi erguendo aramado, armando bretes,

pondo arames e porteiras no teu rumo,

maquinizando aquela lida simples

que a pata de matungo e destreza de braço

praticavas tão bem para o ganho do pão.

 

E a cada dia os campos mais estreitos,

e o teu pão a cada dia menos farto...

 

E te restou o que depois de tudo?

 

- A pilcha pobre, quase a mesma pilcha

que noutros tempos, fachudaça e linda,

na tarde domingueira ou nos comércios

compunham em sedas e merinos negros

a tua estampa de campeiro e macho.

E ainda o mesmo amor pelo cavalo,

o mesmo gosto em aperá-lo lindo,

bastos de lei e pelegões bem brancos,

tranças de nove e argolões de prata.

Mas apenas o amor, porque o cavalo,

se ainda o tens, é um matunguito feio

curvado a peso de um recal de pobre.

 

E ainda o rancho, que conserva ainda

o mesmo aspecto e a mesma arquitetura

do rancho onde nasceram teus maiores:

o mesmo santa-fé, o mesmo barro,

o mesmo chão batido e os mesmos trens.

Apenas menos farto, peão velho,

pois o charque que coze na panela

já não é tão gordo como antigo

que sobrava a la farta nos varais.

Perdeste quase tudo, peão velho,

e muito pouco recebeste em troca.

A evolução te usurou teus benefícios,

deixou-te à margem como um traste antigo,

tareco pobre de inventário rico

que não merece sequer conta ou lembrança.

 

E hoje... – a pé, bombacha remangada,

changueando aqui e ali o pão difícil

com que matar a fome dos guris.

 

Estrada a fora, sombra do que foste,

vais repontando os restos de ti mesmo

nesta estranha estrada sem regresso.

 

E na consciência absoluta do teu fim

tapeia bem pra nuca o chapéu torto

- último gesto de guasca rebeldia - ,

pois se era assim que peleando se morria,

tu, com certeza, vais morrer assim.