ALMA PAMPA

Aparício Silva Rillo

 

Os ossos

Como signos de cal.

A ferrugem

Nos ferros enterrados.

Alicerces de pedra-moura

Naufragados

Sustentam século e meio de madeiras

Roídas pelos ratos da intempérie.

A memória do vento

Guarda o berro do boi

E o relincho de guizos dos potrilhos.

Por debaixo do pasto

A cicatriz das cambotas das carretas

-as que gemeram cargas nos repechos

e atropelaram bois- do- coice nos lançantes.

No palanque de pau-ferro

-dentre tudo o que tombou o que resiste-

a página do cerno

e nela a caligrafia da marca- de- ferro dos senhores

-desses de que resta a identidade

nos papéis imperiais e batistérios.

 

Aqui foi a estância...

 

Exatamente aqui,

Nesta fralda de cerro

Que se derrama até o risco do horizonte

A sublinhar-se no céu que beija a terra.

 

Os aramados,

As taipas arrozeiras

Aprendem geometria nestes rasos

Onde cavalos de guerra e seus ginetes

Mediram arrobas de audácia nos combates

Que a história resguardou em seus retratos.

 

Quando a terra de ninguém se tornou pátria

O braço miliciano ergueu a estância

Trocando a espada pelas boleadoras.

Ninho e fortim

A um passo da fronteira

-de um lado o português,

do outro o castelhano-,

era um pássaro de pedra, vigilante,

com um topete bagual vinchado a cores

de brasões imperiais e de bandeiras!

 

Foi a pega do boi,

Foi a doma do potro,

A rendição dos xucros e alçados

Aos instintos dos bugres e mestiços,

-esses os donos legítimos da terra

que o Império repassou,

em papéis brasonados,

a áulicos,

guerreiros,

comandantes...

 

Era o campeiro a se formar no tempo

Moldando aos poucos a futura estampa

Do que seria, mais tarde o construtor

Da economia pastoril do pampa.

 

Fomos vê-lo, depois ao sul do continente,

Já misto de gaudério e de soldado

-trabuco a mão e cabeleira ao vento,

como um duende a cavalo na Campanha

a rechaçar as ambições de Espanha

nos muros da lendária Sacramento!

 

Peleou em Santa Tereza,

Na Vila do Rio Grande e São Miguel.

D. Juan Salcedo conheceu-lhes as manhas

Quando o grande capitão Pinto Bandeira

Passou como um tufão por estes nortes

Retornando os bastiões de Portugal.

 

Conquista das Missões, anos depois.

Aventureiro e soldado, acompanhou

Pedroso e Borges do Canto nesta gesta

Que foi um bronze sonando de bravuras.

Não mais que quarenta valentes galopando

-os que deram a Portugal o comarcado

que tem o rio Uruguai na extremadura!

 

Da simbiose do gaudério e do soldado

-acabada expressão do trabalho e da guerra-

um novo tipo social então surgia

quando o Século Dezenove amanhecia

nos horizontes de uma nova terra.

 

E os anos foram passando...

Gente morria e nascia.

Só a estância continuava

Nas léguas de sesmaria.

 

Campanha da Cisplatina,

O Decênio dos farrapos.

A Guerra do Paraguai

Levando os tauras dos ranchos,

Deixando as mulheres sós.

Um dia, Noventa e Três

Lançando irmão contra irmão

E a degola a fio de faca

Plantando rubros no chão.

 

Os chefes, quando voltavam

Do fumo destas batalhas,

No largo peito ostentavam

Medalhas de prata e ouro,

Enquanto os peões mostravam

-a láurea dos infelizes!-

o rasgão das cicatrizes

cunhadas no próprio couro.

 

A ampulheta do tempo e sua areia

A escorrer como um rio as suas águas...

 

E, de repente,

A mudança inexorável!

 

O campo se transforma,

O trabalho se transforma,

O patrão se transforma,

As mulheres e homens se transformam.

 

É o alambrado que chega.

É o potreiro que chega.

É a mangueira que chega.

É a estrada que chega.

É o trem-de-ferro que chega.

É o moinho- de –ferro que chega,

E se põe a girar,

A girar

E a girar,

 

Como a vida girou

E em seu giro passou

O peão a “pião”:

um brinquedo a rodar

Na poeira do chão,

À sombra de sua sombra

Sob a sombra do patrão.

 

Os de hoje,

Viemos desses ossos e destroços,

Dessas misérias e altaneiras,

Desses rasgões no couro e desses ouros!

Viemos do relincho dos potrilhos,

Do laço a tironear aspas de touro!

 

Os de agora,

Viemos do churrasco e da caúna

Verdeando mates pelas madrugadas!

Das arreadas de alçados, dos rodeios,

Do seio de uma gaita e seus gorjeios,

Do relâmpago de adagas nas peleias,

Dos cemitérios de campo e das taperas.

 

Temos os traços ancestrais dessas figuras

Aprisionadas no recuerdo dos retratos

Que sustentam paredes nas molduras.

 

As carretas do tempo sofrem eixos

A sustentarem cargas de naufrágios

De que somos herdeiros e salvados.

 

Os do presente,

Os de hoje,

Os de agora,

Somos ponteiros dessa trajetória,

Fimbrias gizadas a contar do centro

No cerno de pau-ferro dessa estampa.

 

Por isso a vertical de nosso orgulho

Que se levanta, gaúcha e pêlo-duro,

Da alma pampa que nos há por dentro!