SONHO CRIADOR

                                                      Antônio Augusto Ferreira

 


Não,

já não são mais de mim arrancadas

que a um corpo velho só restou defeitos.

Os horizontes turvos do meu peito

já tiveram a cor das madrugadas.

Também fui moço

e parti a inventar um mundo novo,

o braço verde, o peito pelechado,

os olhos claros refletindo, alçados,

a cor do céu, boiando nas aguadas.

 

Eu era o capataz do meu destino

e empurrava a pobreza nos encontros,

varando a vida arisca feito um potro,

levando sempre um ideal de tiro,

A lua cheia a gauderiar comigo

me alumiava os rumos da cruzada,

com meu sorriso de topar parada

e a voz de calmaria no perigo.

 

E eu tive coragem na vigília

e tive por fortuna a juventude

e aqueles sonhos de quem tem saúde

no aconchego tranqüilo da família.

Nem o trabalho, nem a dura lida

me achou amargo, nem me fez cansado.

E eu fui um pouco um tigre renegado

para buscar o brabo pão da vida.

 

As minhas cartas

não vieram marcadas para o jogo,

mas eu peguei na brasa e comi fogo

e me lambi do suor para consolo.

O meu caminho, que encontrei tapado

eu fui abrindo a foice e a machado,

e se algum dia eu levantei telhado

eu amassei com os pés o meu tijolo.

 

Os meu baguais,

fui eu próprio quem teve que domá-los,

pois não se emprestam nem se dão cavalos

a quem não tem nem onde cair morto.

Mas a cada golpe,

a cada tirão que eu dava e recebia

o velho sonho se fortalecia

de um dia ter tropilha e criar potro.

 

Ah! Mocidade arisca que dispara!

Eu tinha muita força no tutano

e a coragem de armar meu próprio plano

sem o receio de quebrar a cara.

Então derrubei mato, e na coivara

plantei a saraquá, milho de cova,

e a minh alma brotou na roça nova

que o meu próprio machado derrubara.

 

Ver a planta que nasce é ter um filho.

Eu, que plantara um sonho de fartura,

via crescer tão verde e tão segura

minha ilusão, com que adubara o milho.

E plantar outra vez a terra miga...

A mão da enxada é a mesma da guitarra.

O meu braço operário é de formiga

e alma cantadeira é de cigarra.

 

E o sonho criador se fez um dia.

A vaca mansa, vinda por leiteira,

amanheceu num canto da mangueira

transparente de luz, lambendo a cria.

O sol é o mesmo, mas é outro o brilho,

a semente madura é fecundada.

E a jovem moça, eterna namorada,

incha a barriga para ter meu filho.

 

Como uma ave grande, sob as asas

chama e protege uma ninhada inteira,

eu apontei pro céu outra cumieira

e ergui mais um puxado para as casas.

E as nossas quatro mãos foram pequenas

pro cercado, o pomar, o pátio cheio.

E o céu amanhecia nas estrelas

dos olhares da prole que nos veio.

 

E vieram bonecas e petiços,

as tardes domingueiras se passando.

Nesse tempo os verões andam voando

se a gurizada cresce em pleno viço.

Depois, são os colégios, a cidade.

Há que tocar-se a vida para a frente.

O pago então é um sonho decadente

sobrevivendo em brumas, na saudade.

 

Agora cada qual faz seu caminho.

Batem asas os filhos quando emplumam,

mais dia, ,menos dias, todos rumam

a construir seu próprio rancho e ninho.

De um sonho criador, quanto carinho,

quanta saudade boa pra viver

na sina de cumprir este destino

de criar filhos pra depois perder.