RETRATO

Antônio Augusto Ferreira

 

 

Estas botas parecem da família,

desbotadas de suor e  água de sanga,

lustrosas das correias das esporas,

com seus bordados que teceu o mato,

desenhados a mãos de unha-de-gato

e japecanga.

São velhas botas de solado gasto

já  deformadas de viver de arrasto.

 

A bombacha vem cheia de remendos,

já  tão rala nos joelhos e fundilho.

Nos joelhos gastou com cada filho

que me subiu ao colo

em busca da canção

de campear sono.

O fundilho se foi na lida bruta

de amansar potros e de sovar pelego.

E o pano original se foi comendo

até meio sumir-se entre remendos

em triste imitação da alma do dono.

                  

A guaiaca vermelha, sem curtume,

que muito carregou armas de briga,

mal me suporta o peso da barriga

como na espera de que um dia a aprume.

 

O lenço é um maragato desbotado,

este brasão que ondula no pescoço

e  que é o mesmo que andava, quando moço

a tremular aos ventos, no passado.

 

E que dizer das guascas, do chapéu...

Um lombilho quebrado, uns pelegos

rabonados de uso,

as cordas ressequidas,

dão-me a idéia, talvez, de algumas vidas

que se preparam pra enfrentar o céu.

E poncho, e cama, e rancho em desalinho,

há  em tudo um retrato mal traçado

do muito que já  tive no passado

e o pouco que restou neste caminho.

 

E a alma – Santo Deus – a alma,

como andará por dentro a velha bruxa?

A cada dia mais serena e calma

mas cada vez mais guapa e mais gaúcha.

Resignação, amor, saudade, espera,

nas lembranças de um tempo que  foi lindo.

E uma réstea de luz, tremeluzindo

para as tardes azuis da primavera.