O COMBATE DE RIO NEGRO

(Antonio Augusto Ferreira)

 

Rio Negro foi assim, mais que um combate,

foi todo um dia devotado à fera,

e a gente viu as presas da pantera

cravarem-se mortais na carne humana

no lugar preferido: a jugular.

 

Rio Negro, como palco que era verde,

ficou tomado de vermelho e preto,

e a gente viu a força com que o ódio

irrompe dessa audácia que há no homem

pra dar lugar à fúria do animal.

 

O combate era entre tropas da fronteira,

homens forjados no calor da guerra

que nesse dia fez tremer a terra

com sentenças de morte sem defesa.

Foi condena de tantos, que eram bravos,

e vendo-se perdidos, soltam armas,

mas tombam degolados no holocausto

pra que o ódio se espoje no banquete

e a fera possa devorar a presa.

 

Essa revolução vinha de longe,

tava estampada n'alma e nos pescoços.

A cor de lenço era o brasão dos moços

que os unia ao caudilho do lugar.

93 já tinha feito estragos

nas heróicas cargas a cavalo;

e as mortes a fuzil e a ferro branco

semeavam carniças pelo pago.

 

O combate em Rio Negro foi terrível.

Joca Tavares, do quartel de João Francisco,

com 3.000 homens, em manobras ágeis,

cerca e envolve a força governista.

Já não dá mais pra resistir na guarda,

a desvantagem em número e terreno

obriga os homens a depor as armas.

 

Ao todo são 300 prisioneiros

que estão agora maneados na mangueira.

O comandante vencedor se afasta,

mas e quem é que fica em seu lugar?

 

Pois é aí que surge no cenário

a figura mortal de Adão Latorre,

de faca em punho pra tratar dos presos.

É que ele tinha contas a ajustar.

 

Manda trazer pra fora os prisioneiros,

um por um, despojados e maneados,

vêm sendo apresentados pra sentença.

A razão é indiferente na degola

e a decisão dispensa os argumentos.

 

A execução começa sem rodeios:

amunta no cangote do vivente,

a mão esquerda puxa-lhe os cabelos,

enquanto a faca abre dois buracos

na carótida que esguicha o sangue quente.

 

É degola brasileira a que pratica

nesse começo mais que criterioso

de matar prisioneiro a sangue frio.

 

Vem outro condenado - um salto, o talho;

a mão, as roupas se empapando em sangue

aumentam o furor do coronel.

Esse bodum de sangue, suor e fezes

e o terrível odor que tem a morte

atrai a cachorrada do galpão

que vem lamber as poças no local.

 

Uma carroça embarca o degolado

depois que ele exercita os movimentos

subseqüentes ao golpe da degola:

primeiro vem o talho e a golfada.

depois, pára de pé, ensaia uns passos,

solta uns gritos e uns roncos de terror,

estremece, cai e se contorce até a morte.

 

Latorre afia novamente a faca,

parece conhecer o seu ofício,

mas à medida que lhe espuma o ódio

muda de tática, mostra outra maneira

de passar um cristão no fio da faca..

 

É a "criolla", a que exige menos,

não requer cuidados nem perícia,

o talho a trafegar de orelha a orelha,

um golpe só, cortando artérias, goela,

igual a quem, não sabendo, sangra ovelha.

 

O prisioneiro Pedroso é altaneiro

mas tenta negociar com a facínora:

"- Quanto vale a vida, Adão,

de um homem bueno e valente?"

"- Valente sim, vossimecê,

mas bueno não, pelo que andou fazendo.

A tua nada vale, tá no fio da minha faca".

Pedroso sente o calor da antiga luta,

levanta o queixo, entesa o corpo, afronta a faca:

"- Então degola, negro fiadaputa!". (*)

 

O local tá virado em sangue e barro

numa pasta que já vai se grudando

nas botas dos soldados.

Os caranchos estão sentados

nos galhos dos umbus

à volta do massacre..

 

O carroceiro leva os corpos quentes

pr'uma lagoa,

jogando-os n'água para que se afundem.

Essa lagoa passou a chamar-se "Música"

pois dizem que os gemidos dos coitados

ainda hoje assombram essas plagas.

 

Vem notícia pior da beira d'água:

uma vara de porcos esfomeada

pressentiu o fartum da carne fresca

e está devorando alguns cadáveres

pois não deu tempo de os jogar no fundo

ficando alguns largados pela margem.

 

Ao todo são trezentos os da faca?

Ainda hoje se discute o número

dos sangrados neste dia, no Rio Negro.

 

E o que ficou desse macabro fato,

que teve represália no Boi Preto,

onde outro coronel, um outro bárbaro,

deu o troco de moeda de igual peso?

Ficou-nos esse quadro de tragédia

que não se apaga nunca, nem num século,

e mancha tão profunda nossa alma

quanto denigre a história conterrânea.

 

Rio Negro foi assim, mais que um combate,

foi todo um dia devotado à fera!